www.jus.com.br
Eficácia, satisfatividade e direito à adjudicação nos contratos de promessa de compra e venda com estipulação de irretratabilidade  

Texto extraído do Jus Navigandi
http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=565

  Pedro Simões Neto
advogado em Natal (RN), professor da UFRN e da Universidade Potiguar, professor colaborador da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Norte, membro do Instituto dos Advogados do Brasil e do Instituto Brasileiro de Tecnologia Jurídica


          "...soy de aquellos que piensan que el derecho es mutcho menos la obra del legisladoe que es producto constante y espontâneo de los hechos. Las leues positivas, los Códigos, pueden permanecer intactos en sus textos rigidos: poco importa; por la furza de las cosas, bajo la presión de los hechos, de las necessidades prácticas, se forman constantemente instituciones juridicas nuevas." Léon Duguit (1)


Introdução

          O uso corrente consagrou uma espécie de ajuste informal que atende aos interesses das partes que não podem, ou não querem, vincula-se a um contrato definitivo. Consiste numa promessa, unilateral ou bilateral, de conclusão futura dos negócios jurídicos que reclamam determinado contrato-tipo.

          Assim, quem se vê impedido de celebrar uma avença típica, ou quando esta revela-se inoportuna, dando certas condições desfavoráveis ao estipulante, como, por exemplo, a compra e venda que admite o pagamento em múltiplas e sucessivas prestações, modalidade que não aconselha aos interesses do proprietário a transferencia do domínio do bem alienado, vale-se, então, de uma promessa, que é, de fato, uma declaração afeta a uma obrigação de fazer, em que se estatui, exatamente, a obrigatoriedade da satisfação da exigência formal requerida pela lei para perfeição do negócio jurídico.

          Relacionando-se com a conclusão futura da exigência formal, poder-se até mesmo considerar que este seria um modus convencional informal, já que, em sendo a obligatio faciendi consistente na prestação de reproduzir o conteúdo do acordo, dando-lhe forma jurídica definitiva, é acordo atípico, não reclamando forma especifica, nem disciplina peculiar, senão aquela alusiva ao gênero subscrita pela doutrina e pela jurisprudência.

          A despeito de referencias nas Ordenações Filipinas  (Livro IV, Título XIX) e Afonsinas   (Livro IV, Título 57, parágrafo primeiro) a popularização de tal avença, aplicada à compra e venda de bens, entre nós, registrou maior incremento no século vinte, mais precisamente na década de trinta, quando o mercado imobiliário, pela primeira vez na historia do país, experimentou um crescimento inesperado.

          No contexto referido, cogita-se que industriosos operadores jurídicos teriam revisitado o pacto de contrahendo dos romanos e nele encontraram a fonte doutrinária provisionadora de um novo negócio jurídico, adequado aos interesses ditados pela conjuntura econômica. Se este, verdadeiramente, foi o arquétipo do inovador molde contratual, os responsáveis por sua configuração não teriam como ignorar que os romanos negavam ao pactum o direito à ação, além de ser o instituto reputado como subserviente ao contractus, eis que o pacto assim conformado, objetivava, exatamente, a constituição de acordo voltado para a obrigação de contratar, sendo, de fato, mera promessa de contratar. Configurando-se como de caráter pessoal a relação jurídica, por via de conseqüência, evidenciava-se a impossibilidade de garantir a efetividade da promessa, já que a obrigação de fazer não admitia execução compulsória, competindo ao prejudicado pelo inadimplemento, valer-se apenas da obrigação de indenizar.

          A promessa, por conseguinte, intencional ou casualmente, caracterizava-se instrumento adequado às oscilações do mercado imobiliário, tendente a favorecer os interesses da parte dedicada à especulação financeira, exatamente em razão da sua precariedade como instrumento de tutela jurídica.

          Ao gênero que servia à espécie – o contrato preliminar – era atribuído o crédito de promessa veraz, apta a gerar a expectativa jurídica de transmissão do domínio, mas era instrumento flexível, complacente quanto à possibilidade de desfazimento da obligatio, em proveito da realização de novo negocio.

          A maleabilidade depreendida da construção inaugural, pode ter contribuído para a equivocada compreensão dessa via contratual, dando-a como instituição jurídica precária quanto à garantia de adimplemento da obrigação, de eficácia questionável e com estabilidade inevitavelmente provisória.

          Na prática da venda de imóveis, principalmente de lotes de terrenos urbanos, cujo preço era desdobrado em múltiplas parcelas de pagamento, concluíam as partes um acordo de vontades, em que o vendedor prometia transferir o domínio do imóvel alienado, por escritura pública, tão logo o comprador satisfizesse a ultima prestação de pagamento. Em contrapartida, o adquirente comprometia-se a fazer valiosa a sua promessa de realizar o pagamento conforme as condições e os prazos pré-ajustados.

          Ocorreu, compreensivelmente, que, à medida em que o mercado imobiliário desenvolvia suas atividades animado por uma celeridade inimaginável, nessa mesma proporção, verificava-se a avidez da especulação dos que operavam com imóveis. Em conseqüência, o preço atribuído ao imóveis acusava valorização em escala geométrica, constatando-se esse fenômeno até mesmo, incontinenti à conclusão do contrato, em razão do crescimento despropositado da demanda, fato que estimulou os vendedores a buscarem o lucro fácil através da venda a terceiros dos bens já alienados. Cientes de que o ajuste tinha uma natureza precária, os operadores foram levados a descumprir os seus compromissos, revendendo a quem ofertasse melhor preço, os imóveis já alienados, objeto das promessas de venda.

          De fato, os especuladores sentiram-se encorajados em face do disposto no artigo 1.088 (2) do Código Civil, que faculta o direito de arrependimento às partes que não se louvaram em instrumento público, quando este for exigido como prova do ajuste, devendo, em tal circunstância, ressarcir perdas e danos ao prejudicado. Ora, o proveito econômico obtido pelo alienante, na revenda do imóvel, era muitas vezes maior que o valor devido na restituição, mesmo acrescida das perdas e danos reclamada pelo contraente lesado, fato que contribuiu para alicerçar como regra a faculdade resolutiva das promessas, excepcionalizando-se, como se fora liberalidade ou apego ao empenho da palavra dada, a mantença do compromisso.

          Atento à desigualdade dessa relação jurídica, o governo Getúlio Vargas, sob inspiração do Ministro da Justiça Francisco Campos, editou o decreto-lei 58, em 10 de dezembro de 1937, dispondo sobre o loteamento e a venda de terrenos para pagamento em prestações, que estabelecia a disciplina dos loteamentos e a tutela dos direitos à aquisição coletados pelo compromissário comprador de terrenos loteados e não-loteados, conforme prescrevem os artigos 4, 5 e 22, do decreto referido, este ultimo transcrito literalmente:

          Art. 22 – Os contratos, sem cláusula de arrependimento, de compromisso de compra e venda e cessão de direito de imóveis não loteados, cujo preço tenha sido pago no ato de sua constituição ou deva sê-lo em uma ou mais prestações desde que inscritos a qualquer tempo, atribuem aos compromissários direito real oponível a terceiros, e lhes conferem o direito de adjudicação compulsória nos termos dos artigos 16 desta lei, 640 e 641 do Código de Processo Civil.

          Pode-se sinalizar, a partir da edição do decreto referido, uma nova orientação jurídica aos ajustes, até então concebidos como meros intermediários ou precursores dos definitivos, retirando-se-lhes o caráter de precariedade e até mesmo de provisoriedade, vale dizer, de fragilidade, enquanto expressão das obrigações decorrentes do acordo de vontade das partes.


A equivalência entre a percepção popular e a razão jurídica
quanto ao manejo e à eficácia da promessa

          Cogita-se da adequada interpretação jurídico-legal do gênero identificado como "contratos preliminares", ou "pré-contratos", especialmente das promessas unilaterais e bilaterais de compra e venda, quanto à sua natureza jurídica, e os inevitáveis exames quanto à sua eficácia, sobretudo no que respeita à sua autonomia ou dependência do contrato definitivo, cuja extensão conduz impositivamente ao aspecto da satisfatividade, considerando-se a necessidade de reprodução do seu conteúdo ou à sua abstração, assim como das questões periféricas, mas igualmente pertinentes, tais como respeitantes à forma e à exigência material ou a sua exoneração, do registro do título constitutivo no cartório de registro de imóveis competente, para legitimar-se à postulação da ação de adjudicação compulsória.

          Vamos por partes.

          Prima facie, convém que se estimule a análise lógico-interpretativa do ajuste contextualizado, a partir da percepção  (ou intuição) dos seus elementos mais ordinários e profanos.

          O fato gerador determinante da opção pelo ajuste é a conveniência, e não a adequação do negocio jurídico. Só então o operador constata que o negócio jurídico é válido e eficaz.

          Mesmo alheando-se a ficção segundo a qual ninguém ignora o disposto em lei, os manejadores de instrumento contratuais, têm ciência que a compra e venda de bens imóveis, por exemplo, só se valida através da escritura pública, tanto, que o vocábulo "escritura" associa-se, para a totalidade das pessoas, ao traslado emitido por oficial público competente e só ela atribui a presunção absoluta e a prova material incontroversa do domínio sobre o bem imóvel.

          Não obstante, a conveniência que inspirou a alternativa pelo modus contratual, gera, necessária e indissociavelmente, a expectativa de proteção, de tutela dos direitos coletados e atribuídos co-respectivamente pelas partes. Não buscam as partes apenas a prova material do ajuste, mas a possibilidade jurídica de exigir o adimplemento da obrigação. Senão, teriam recorrido a um simples documento de quitação, um recibo-declaração que tem, também, expressivo uso corrente como comprovante do negócio realizado.

          Pode-se concluir, sem qualquer hesitação, que as partes buscaram, no que denominaremos impropriamente, como recurso argumentativo corrente com o modelo leigo, contrato informal, um instrumento alternativo para a composição dos seus interesses e a fixação de suas obrigações, acreditando-o como legitimo e eficaz, face ao impedimento circunstancial de se louvarem na avença formal, conforme expusemos no inicio do trabalho, sem tê-lo, obviamente, como o recurso de eficácia absoluta, contudo, admitindo-o como meio válido para comprovar e ensejar a execução das prestações.

          Cremos mesmo que é a gradação da eficácia do título aquisitivo de direito, o elemento distintivo entre o contrato formal e o "informal", do ponto de vista de percepção vulgar. O contrato de compra e venda de imóveis, expresso através de escritura pública conferiria ao título – embora assim não se considere do ponto de vista jurídico – valor presuntivo de eficácia absoluta  (jure et de jure) e a promessa (3), valor relativamente eficaz  (juris tantum). Excede à percepção comum o predicado atinente à oponibilidade erga omnes, porque a intuição de quem é detentor de um título comprobatório de direito, reconhecido por lei, leva-o a conceber-se apto a defender o objeto tutelado pelo título.

          Tem-se, então, que o contrato informal é reconhecido pela sociedade como título hábil para a comprovação material do ajuste, apto, portanto, a proporcionar às partes a execução co-respectiva das obrigações estipuladas.

          É sabido que o contrato é iniciativa voluntária de economia privada, e que a lei reconhece-o como ato jurídico, desde que estejam presentes os pressupostos indispensáveis à configuração do negocio jurídico objetivado pelas partes. E, dentre essas iniciativas, em acordo com a doutrina do nosso direito positivo, perfiliam-se certos acordos imanente à própria essência contratual, sendo, por isso, propriamente denominados de contratos consensuais, porque se concluem apenas pelo consenso das partes, não se lhes impondo qualquer requisito formal, senão a essência volitiva. Dente esses contratos, distingue-se o da compra e venda, para o qual, a contrario sensu, excepcionaliza-se uma espécie formal e solene, quando a sua destinação objetiva a transferencia de domínio dos bens imóveis, assim como a instituição de direitos reais de um modo em geral, desde que exceda o valor venal estabelecido em lei.

          Os contratos "informais" de compra e venda imobiliária, mesmo se lhes concedendo natureza de direito real, tal como as promessas que contenham cláusula de irretratabilidade, ou não explicitem o direito ao arrependimento, não podem ser caracterizados como translativos de direitos reais. Não vinculam o alienante à efetiva obrigação de transferencia do domínio, mas a promessa do alienante em obrigar-se futuramente a tal prestação, tanto que o adquirente ofereça adimplemento às suas obrigações. É, portanto, contrato pessoal, embora o implemento de solenidade facultativa – e não compulsória, como ordinariamente se imagina – qual seja o registro do instrumento da promessa no cartório de registro de imóveis competente, adicione-lhe caráter real. Sendo o suplemento formal indispensável à configuração do direito real uma faculdade do adquirente, que não dever jurídico decorrente de norma coercitiva, não se pode imputar o realismo como essencial à natureza do contrato de promessa de compra e venda de bens imóveis.

          Nada obstante, o direito real conferido à avença, não substancia a translatividade do domínio. A promessa irretratável submetida a registro, possui um caráter real sui generis, não se mesclando nem mesmo com os tradicionais direitos reais sobre a coisa alheia, arrolados em numerus clausus pelo Código Civil. Resulta de esforço interpretativo doutrinário e jurisprudencial, que se apoia na inteligência de um único texto legal  (DL 58/37), que trata da matéria em um único artigo  (22).

          Releva-se, então, um complexo e questionável direito real de aquisição, em que a prestação pessoal do promitente vendedor, é substituída por um insuspeitado jus in re aliena, consistente na obligatio faciendi específica, que, não admitindo a alternativa satisfação da garantia indenizatória, é suprida por sentença judicial que lhe atribui natureza compulsória, cujo título é constitutivo do direito à adjudicação da coisa prometida.

          Mesmo intencionando aceitar a proposição doutrinária tal como esta se apresenta, ainda assim, não se configura direito autônomo, reconhecido como absoluto, à transmissão do domínio, porque, por mais que se pretenda afastar a prestação do promitente como indispensável à execução da obrigação, é desta que se vale o adquirente ao pretender a satisfação do seu crédito. Somente na injusta recusa de outorga do contrato definitivo, ato provisionador do direito à efetiva transferência do domínio, a coisa é exigida.

          Pode-se afirmar que a promessa, lastreada pela renúncia ao arrependimento, institui, em favor do compromissário – desde que o instrumento do contrato submeta-se ao registro competente – um privilégio, qual seja a de que o adquirente, convertido em credor da obrigação de fazer, possa valer-se da faculdade real, tanto que a prestação pessoal do devedor não possa ser obtida.

          Em estreito arrazoado, crente de maior largueza expositiva e argumentativa, a configuração do direito real, na hipótese em comento, aproxima-se mais da estipulação de condição resolutiva imposta ao meio de aquisição, que propriamente de categoria especial de direito real. A transmissão da propriedade subordina-se ao implemento de condição que, uma vez atendida, consagra o direito à própria coisa prometida, tanto quanto em algumas espécies de contratos de vendas imobiliárias em geral em que se estipula a resolubilidade da propriedade.

          A linha argumentativa, no nosso modesto modo de entender, é inexcedível. Se, entretanto, esta for ultrapassada por exposição igual e contrária, de amplo convencimento, que se adite em reforço à nossa exposição, a evidente preexistência de norma jurídica constituinte do molde contratual  (DL 58/37) que reconhece a convenção como válida, além de se lhe conceder a iniciativa da ação, que assegura o direito, consubstanciado nos artigos 639 e 641 do Código de Processo Civil, adiante transcritos.

          Logo, nada obsta à livre circulação do contrato "informal", nem se lhe desnatura a configuração jurídica de ajuste de natureza pessoal, embora com eficácia real quanto à execução da prestação prometida.

          Coaduna-se, por conclusão, a percepção vulgar com a expressão jurídica.


A autonomia, a eficácia e a satisfatividade da promessa.

          Sendo a promessa modus válido e eficaz, e portanto, hábil, para consagrar as obrigações, passemos à análise de dois dos componentes que lhes são imputados – a provisoriedade e a autonomia ou dependência.

          Ninguém, nenhum intérprete do direito, poderá negar a irresistível convicção de transitoriedade do contrato preliminar, seja por definição vocabular do gênero que integra, ou pela destinação objetiva. Evidencia-se, então, que a promessa fataliza-se à extinção desde que satisfeita a obrigação que lhe deu causa.

          Não obstante, a promessa é uma prestação reclamada pelo adquirente, após satisfeita a sua própria obrigação, quando, então, converte-se em credor o alienante. Tem-se, por conseguinte, que o adimplemento d obrigação do alienante é modo de extinção natural do contrato, por execução bilateral das prestações, como de resto ocorre com todos os demais contratos, não se particularizando esse efeito apenas em relação à promessa.

          O que se pretende, de fato, saber, e este deve ser o ponto fulcral da análise, é se o contrato dito preliminar é satisfativo ou dependente do contrato definitivo, in casu, a promessa irretratável de compra e venda, em relação ao contrato definitivo de venda. E se a eficácia pode traduzir-se como satisfatividade, reconhecendo-se no ajuste prévio, desde que válido como negócio jurídico, a mesma produção de efeitos pertinente ao contrato típico.

          As nomenclaturas qualificativas do ajuste em comento, que o dão como "preliminares", "preparatórios", "precursores" ou "pré-contratos", ao par do tratamento de "definitivos" emprestado aos contratos para os quais se concedeu nomen juris – essencial, dado sua tipicidade e adequabilidade, ao negócio jurídico proposto pelas partes – prejudica, por prevenção, o trato da controvérsia. Se conseguirmos superar o preconceito vocabular, entretanto, é provável que as diferenças não sejam assim tão evidentes. Senão, vejamos.

          O conteúdo do contrato assenta-se na manifestação volitiva das partes. Pode-se dizer que o acordo de vontades é a essência do negócio jurídico, o seu propósito e a sua causa eficiente. Tal manifestação pode ser colhida em qualquer acordo válido, cujo instrumento seja reconhecido por lei, tal como elucidam os artigos 131  (caput) (4) e 135 (5) do Código Civil. Desnecessário, portanto, perquirir se o acordo de vontades instrumentalizado por pré-contrato, impõe-se ao contrato definitivo.

          Na hipótese do ajuste preparatório, ultrapassada a questão da sua própria autonomia e validade como negócio jurídico, quer-se saber se as estipulações devem ser compulsoriamente reproduzidas em contrato definitivo como condição indispensável à execução do objeto material do ajuste – a transferencia do domínio – ou se, abstraindo-se a solutio da obrigação assumida pelo alienante – a outorga da escritura pública – a convenção que teria caráter de mediação para a conclusão do negócio jurídico, seria satisfativa, se atenderia ao reclamo de eficácia, de atendimento ao objeto jurídico perseguido pelo credor da promessa, já que se tem como ociosa a questão da validade.

          Conclui-se, desde logo, que, se as condições pactuadas no contrato informal, o seu conteúdo, atendendo a requerimento da melhor doutrina, guardarem adequada conformidade com as exigências reclamadas pelo contrato-tipo,  (v.g. na compra e venda, as estipulações quanto ao preço e ao objeto (6)) detalhando-os e os caracterizando como se efetiva fosse a convenção, seria ocioso reproduzi-los, tanto quanto ignorá-los seria reputar inócuo o contrato informal. Se, entretanto, tais condições, indispensáveis à conformação do contrato de compra e venda, forem ignoradas, tem-se que o ajuste informal seria mero precursor, preparatório da avença final, reclamando a instrumentação pública para a sua eficácia, porque a ausência das estipulações substantivas, essenciais à própria determinabilidade do objeto jurídico foram ignoradas, presumindo-se que as partes reservaram-se a faculdade de instituí-las no ajuste formal.

          Observa-se, entretanto, que a hipótese não é de uso corrente na prática, em razão da cautela que orienta as partes na formação de qualquer ato que requeira a sua vinculação, mormente se buscaram o instrumento para consagrar as correspectivas obrigações, conducentes ao objeto jurídico perseguido. Este, por conseguinte, é sempre determinado, para que o ato se revista de eficácia.

          Veja-se, então, que a reprodução do conteúdo predeterminado num contrato válido, mesmo atinando-se ao indispensável suprimento de requisito formal necessário à configuração do ato jurídico perfeito, seria exercício de ociosidade que depõe contra a economia jurídica. Outrossim, se desatendida fosse a prescrição legal de observância à forma expressa, e o contrato precursor contivesse os elementos configurativos à sua validade como negocio jurídico de caráter real – a forma escrita com inclusa cláusula de irretratabilidade e o registro do título – o objeto material estaria defeso, podendo o titular do direito exercê-lo erga omnes, em caráter exclusivo e irrevogável, facultando-se, ainda, o gozo dos direitos pertinentes à propriedade, de uso fruição, disposição e de reivindicação, além de tê-lo potencialmente submetido à sua jurisdição patrimonial.

          O efeito do contrato definitivo sobre o preliminar, seria, então, meramente homologatório, ratificador, já que nem o contrato informal, nem o formal, têm o condão de operar a transmissão do domínio visto que ambos são títulos constitutivos de direito, que não títulos aquisitivos de domínio, consoante definição da doutrina pátria, a meio caminho entre as diretrizes do direito civil alemão e do franco-italiano (7).

          Tenho para mim que ambos se igualam como títulos constitutivos de direito real sobre o imóvel, porque prometem a transmissão do domínio, visto que o contrato definitivo, celebrado por escritura pública, como foi visto, consiste em contrato informal de promessa irretratável. A diferença essencial reside no efeito jurídico alcançado por intermedio de cada um dos titulo, desde submetidos ao registro imobiliário. Na promessa, o registro do titulo opera o direito real à aquisição do domínio. Na escritura pública o registro opera o direito efetivo ao próprio domínio.

          Por conclusão, tem-se que, se o escopo do adquirente for o de flanquear o curso forçado da escritura pública, a que se submetem os contraentes por força do disposto no artigo 134, II (8) do Código Civil, por impedimento, temporário ou definitivo, ou conveniência de qualquer das partes, requerendo-se, todavia, do titulo constitutivo assim chamado "informal" a eficácia de direito real exigível pelo titular, assegurando-o quanto à aquisição do domínio e à possibilidade de defensividade erga omnes, o contrato preliminar atende à conjuntura exposta, desde que não contenha, expressamente a faculdade do arrependimento, e o titulo seja levado a registro no ofício imobiliário competente. Podemos até mesmo afirmar que o titulo "informal" assim constituído, pode ser reconhecido como atributivo de um direito potencial absoluto à transmissão do domínio, a partir do reconhecimento de que este ajuste, segundo Orlando Gomes (9), sinaliza permanente "estado potencial" do contrato definitivo. Aliás, já o tinha identificado anteriormente Filadelfo Azevedo (10)   ("na promessa se contém potencialmente a própria venda"). Logo, seu conteúdo opera no sentido de assegurar a propriedade exclusiva ao adquirente, impondo-se a abstenção universal de terceiros quanto à gerência do patrimônio constituído pelo adquirente, por força do direito à oposição contra todos, e da possibilidade jurídica de reivindicação assistente ao promissário comprador. Com essa configuração essencial, a transmissão do domínio, operada pela avença formal submissa à solenidade do registro, apenas tornaria efetiva a propriedade, do ponto de vista formal, sem estabelecer qualquer outra sorte de efeito que favorecesse ao titular do domínio.

          Há, por conseguinte, definitividade e coercibilidade no titulus constituendi, desde que o adquirente haja implemento as prestações a que se obrigou, vez que, em tal situação, é inadmissível a recusa do promitente vendedor em satisfazer a sua própria obrigação.

          Louvados nessa linha de raciocínio, podemos concluir que a escritura pública, em relação ao contrato preliminar submetido aos rigores do decreto-lei 58/37, é ato meramente formal, confirmatório da avença precedente, entretanto, único capaz de prestar-se à solenidade essencial do registro para obtenção do domínio.

          Do ponto de vista utilitário, pragmático, em acordo com a ótica que distingue a eficácia segundo os resultados projetados pelo interessado, o contrato preliminar de compra e venda tem natureza satisfativa, porque o titular do direito real à aquisição exerce sobre o bem prometido, sem quaisquer restrições senão aquelas que vinculam também o titular do domínio, os direitos elementares à propriedade, posto que este o tem efetivamente como coisa própria, seja porque não pode o titular da propriedade opor-se ou concorrer com ele quanto à disposição do bem (11), exonerado que foi do poder dispositivo e do próprio domínio pela condição resolutiva expressa na titularidade do direito real conferido ao promissário adquirente, seja porque conta com aptidão para exercer os atos defensivos da posse e da propriedade do bem.

          É satisfativo o contrato preliminar, considerando-se a sua eficácia quanto ao exercício do direitos pertinentes à propriedade. É também autônomo, porque a soma de direitos coletados pelo promissário adquirente – à exceção, naturalmente, da própria efetivação do domínio, reconhecido como predicado meramente formal, já que a conferência da titularidade da propriedade serviria ao exercício das mesmas faculdades autorizadas pela promessa irretratável – induzem-no, ativa e passivamente à conduta típica do proprietário, podendo alienar gratuita ou onerosamente, transmitir por herança, fruir, gravar, gozar do privilégio da irrevogabilidade do seu titulo   (ou a perpetuidade do domínio, se preferirem), conhecendo as mesmas exceções opostas ao titular do domínio.

          Concedem-lhe ainda, a exclusividade sobre a prometida pertença, do ponto de vista interno, quanto à utilização funcional, social ou econômica, da coisa prometida e, externamente, como direito de constituir-se singular na senhoria do bem, podendoreinvidica-lo (12 e 13) de terceiros que o possuam injustamente.

          E, finalmente, da possibilidade de valer-se d atributo da elasticidade conferido à sua disposição, consistente na faculdade de ceder um ou alguns dos direitos fracionários à propriedade, recuperando-os ao seu talante ou segundo as condições convencionais.


A desnecessidade da escritura pública e do registro
para viabilizar a pretensão judicial da adjudicação.

          No que concerne à possibilidade de adjudicação compulsória pela via judicial, hoje é pacífico o entendimento de que basta a promessa com cláusula de irretratabilidade, reduzida a escrito, mesmo por convenção particular, para legitimar a postulação em juízo. É conveniente, contudo, que se esclareça que há corrente de entendimento diverso, respaldada em controversa interpretação.

          Pretendem os defensores da corrente oposta aos que advogam a informalidade do titulo como elemento hábil à adjudicação, que uma ou as duas condições – a escritura pública e/ou o registro do titulo – sejam pressupostos elementares à configuração do direito à adjudicação. Sua justificativa emerge da exig6encia da norma jurídica que dá como condição essencial à validade do negócio de compra e venda de imóveis, a escritura pública, tal como se depreende do artigo 134, II, referido. Defendem, por via de conseqüência, que, em sendo o ajuste informal, ato precedente ao contrato definitivo, e portanto submisso a este, conformar-se-ia como espécie de dependente ou acessório, subserviente à forma determinada para a sua conclusão.

          Uma vertente ou subsistema dessa corrente entende que é necessário que se adite à imperatividade do instrumento público, o implemento da solenidade que lhe seria substancialmente afeta, qual seja a do registro do titulo no oficio público imobiliário competente. Ou mesmo, até toleram que o ajuste se expresse por instrumento privado, desde que este seja levado a registro.

          Com a devida vênia, é nossa convicção pessoal que a adjudicação é deferida em reverência à natureza irretratável da convenção, quando o implemento da obrigação  (facere) prometida pelo devedor não conhece alternativa válida à conclusão do negócio senão a própria transferencia do domínio. É assim que se depreende dos "consideranda" (14) e da própria inteligência do decreto lei 58/37, além da justificativa política do edito afirmar-se em oposição ao favorecimento, involuntário e circunstancial, de locupletamento, proporcionado do artigo 1.088 do Código Civil, onde o legislador manifesta. Exatamente, a orientação defendida pelos acólitos dessas razoes de convencimento. Portanto, admitir-se que o procedimento ofertado como defensabilidade da convenção preliminar, requisite a forma pública, seria validar o próprio dispositivo legal atacado pelo DL 58/37, proscrevendo-se a tutela da boa fé e firmeza da obrigação subscrita pelas partes, objeto de consideração do provisionamento decretual. Assim é que, o artigo 16 do DL 58/37, estatui, litteris:

          Art. 16 – Recusando-se os compromitentes a outorgar a escritura pública no caso do art. 15, o compromissário poderá propor, para o cumprimento da obrigação, ação de adjudicação compulsória, que tomará o rito sumaríssimo.

          Explicita o referido artigo 15, a hipótese de adimplemento da obrigação de pagamento, por antecipação ou ultimação, ao encargo do promissário comprador.

          Precedentemente, o artigo 11, que se refere supletivamente ao conteúdo da promessa, não registra qualquer exigência quanto à forma do contrato, e até reconhece a dupla alternativa na instrumentalização do contrato, como a seguir:

          Art. 11 – Do compromisso de compra e venda a que se refere esta lei, contratado por instrumento público ou particular, constarão sempre as seguintes especificações:


           (o realce não consta do original).

          Pelo exposto, não há qualquer imposição, ou sequer recomendação de forma especifica, decorrente da lei especial. E não poderia ser diferente, já esclarecemos que o contrato de compra e venda é dualístico quanto à forma, por disposição expressa do direito codificado. A maioria da doutrina concorda com sua natureza consensual, excepcionalizada quando o objeto particulariza bens imóveis. No entanto, a prescrição formal circunscreve-se aos contratos "... constitutivos ou translativos de direitos reais sobre imóveis de valor superior a Cr$ 50.000  ( cinqüenta mil cruzeiros), excetuado o penhor agrícola"  ( art.134, II CC).

          In casu, o direito real somente se configura, quando o titulo da promessa é registrado no cartório competente e tal faculdade é extensiva aos instrumentos particulares, logo, não há como impor a veracidade jurídica da concepção formalista.

          No tocante à exig6encia do registro imobiliário para legitimação do direito à ação de adjudicação compulsória, cremos ser suficiente a denúncia do fato de que essa solenidade afeta mais à defensabilidade da titularidade do direito ante terceiros, que qualquer outra justificativa. É assim a expressão do art. 135 do Código Civil, quando dispõe que os efeitos dos instrumentos particulares não se operam a respeito de terceiros, senão antes de transcritos no registro público.

          A obligatio faciendi consistente na promessa de transferência de domínio, é direito pessoal e configura-nos paradoxal exigir que se registre em oficio imobiliário o título coletor dessa promessa para torná-lo eficaz, apto a produzir os efeitos perseguidos pelas partes, visto que se trata de prestação cometida ao promitente vendedor. Parece-nos mais lógico que a exigência do registro se dê em razão da constituição do direito real, que por si é oponível a terceiros.

          O móvel da vexata quaestio tem sido atribuída à redação do artigo 23 do DL 58/37, que ensejou, inclusive, a adoção da súmula 167 do STF, por controvertida interpretação do texto em analise. Estabelece o citado artigo:

          Art. 23 – Nenhuma ação ou defesa se admitirá, fundada nos dispositivos desta lei, sem apresentação de documento comprobatório do registro por ela instituída.

          O Supremo Tribunal Federal, valendo-se de interpretação literal do disposto na norma relacionada, e, em face da divergência jurisprudencial, trouxe à lume o paradigma sumular já referido, nos seguintes termos:

          Não se aplica o regime do dec. Lei 58, de 19.12.37, ao compromisso de compra e venda não inscrito no registro imobiliário, salvo se o promitente vendedor se obrigou a efetuar o registro.

          Contudo, por entender de justiça que o registro se desse supervenientemente à formação do contrato, editou a súmula 168 possibilitando que o registro pudesse ser feito no curso da ação. E essa foi a única concessão admitida pela Colenda Corte da Justiça.

          A questão, ao nosso modesto ver, é de simples elucidação.

          O decreto-lei 58/37, tomou a se a regulamentação das promessas de compra e venda de imóveis loteados e não-loteados, inserindo-os na disciplina comum, para que se valessem, co-respectivamente, até onde aproveitassem ou carecessem.

          A lei 6.766/79, conquanto não tenha derrogado inteiramente o DL 58/37 e dedique-se à disciplina dos imóveis loteados, inovou o regime do decreto referido, com a redação de dois dos seus artigos, o artigo 25 e o 46. O primeiro, desvincula da adjudicação a obrigatoriedade do registro  ("são irretratáveis os compromissos de compra e venda, cessões e promessas de cessão, os que atribuam direito à adjudicação compulsória e, estando registrados, confiram direito real oponível a terceiros") sendo certo que tal solenidade só é imprescindível à aquisição de direito real, visto que o condicionante  ("estado registrados") prende-se apenas à constituição desse direito. O artigo 46, respondeu pela erradicação da divergência, derrogando o artigo 23, já referido e transcrito, que condiciona o direito de ação adjudicatória à comprovação do registro.

          O disposto na lei 6.766/79, encontra ainda resistências aparentemente insuperáveis por parte dos defensores da integridade formal dos compromissos de compra e venda, elegendo, como derradeiro argumento, o fato de que a lei em comento, trata do parcelamento do solo urbano, vale dizer, circunscrever-se-ia aos imóveis sujeitos ao regime de loteamento, não incluindo os imóveis não-loteados.

          Ora, se foi possível à legislação inaugural sobre a matéria  (dl 58/37) tratar uniformemente, sem distinguir, os regimes imobiliários diversos, desconsiderando a natureza dualista do objeto, como já acentuamos, porque não poderia suscitar o mesmo resultado – senão por inferência paradigmática, por analogia – a lei 6.766/79? Por que diferenciar o tratamento oferecido às promessas de venda, entre imóveis loteados e não-loteados, se o princípio informador da garantia e do privilégio não encontra justificativa lógica, ética ou jurídica para a desigualdade?

          A jurisprudência converge, uniformemente, para essa conclusão. Senão, vejamos:

          Adjudicação Compulsória. Promessa de Compra e venda.

          A ausência de registro da promessa de compra e venda não constitui óbice para adjudicação compulsória de imóvel, ficando superado o enunciado da Súmula 167 da Suprema Corte...

           (Ap.Cv. 190.354-2, CCv do TAMG – 22.02.95 – RJTAMG 58-59/209)

          Adjudicação Compulsória. Titulo do vendedor não registrado. Irrelevância. Carência de ação afastada.

          Perfeito o ajuste em seu aspecto formal. A adjudicação é o suprimento judicial de manifestação de vontade dos vendedores. Execução direta, de cunho pessoal, entre os signatários da obrigação originária, independentemente de qualquer formalidade. A inexistência de registro do titulo dos vendedores é questão registrária, não justificando o decreto de carência.

           (agl 608.606-6, 2ª. C. do 1º. TACv, RT 716/214)

          Adjudicação Compulsória. Registro do Pré-Contrato. Desnecessidade.

          Para a ação de adjudicação compulsória é desnecessário o registro do pré-contrato de compra e venda no Ofício Imobiliário. A eficácia real, decorrente do registro, tem efeito erga omnes, para prevenir direitos contra terceiros.

           (ApCv 194147252, 3a . CCv do TARS. 31.08.94. JTARS 91/347)

          Adjudicação Compulsória. Compromisso de Compra e Venda.. Não-transcrição no Registro de Imóveis.

          Enseja adjudicação compulsória o contrato de compromisso de compra e venda não transcrito no Registro Imobiliário, por ser de caráter pessoal o direito do promissário comprador, constituindo a sentença adjudicatória suprimento da omissão do promitente vendedor em outorgar o contrato.

           (apCiv 120.196-9, 1a . CCv do TAMG. 18.03.92. RJTAMG 27/141)

          Merece destaque a ementa elaborada a partir de relatório do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, do Supremo Tribunal de Justiça  (STJ), como a seguir:

          Compromisso de Compra e Venda – Instrumento Particular. Validade. Registro, Prescindibilidade. Adjudicação Compulsória deferida. CPC, arts. 639 e 641. Divergência doutrinária e Jurisprudencial. Precedente da Corte. Recurso desprovido.

          A circunstância do compromisso de compra e venda Ter sido celebrado através de instrumento particular não registrado não inviabiliza por si só, a adjudicação compulsória, apresentando-se hábil a sentença a produzir os efeitos a declaração de vontade emitida.

           (Resp 5.643-RS, 4a . T do STJ. 07.0591. RSTJ 29/356).

          Destarte, como argumento final de definitivo, o regimento procedimental civil não distingue as espécies segundo suas naturezas objetivas, nem requer o suprimento instrumental formal ou registral, para que o postulante valha-se do direito à execução da obrigação, obtendo sentença que lhe confira a adjudicação do bem sub judice, suprindo-se a declaração de vontade do faltoso, como se depreende da leitura dos artigos 639 e 641 do CPC, limitando-se o legislador ao vocábulo "contrato", dessumindo-se a necessariedade, apenas, de comprovação do acordo de vontades. Assim se expressam as normas referidas:

          Art. 639 – Se aquele que se comprometeu a concluir um contrato não cumprir a obrigação, a outra parte, sendo isso possível e não excluído por titulo, poderá obter uma sentença que produza o mesmo efeito do contrato a ser firmado.

          Art. 641 – Condenado o devedor a emitir declaração de vontade, a sentença, uma vez transitada em julgado, produzirá todos os efeitos da declaração não emitida.


CONCLUSÕES

          O contrato de promessa  (compromisso) (15) de compra e venda, desde que não contenha expressa condição resolutória bilateral, consagrando direito comum dos co-contraentes ao arrependimento, ou que contenha, explicitamente, cláusula de irretratabilidade, é avença típica, autônoma, inconfundível, substancialmente, com meto ajuste precursor da compra e venda definitiva, posto que é auto-suficiente no resguardo do direito real de propriedade, no tocante à exclusividade na aquisição do domínio, desde que o título seja reduzido a escrito e registrado no ofício público imobiliário competente.

          É contrato satisfativo, do ponto de vista da eficácia segundo o resultado objetivo e a tutela do direito à singularidade do domínio. O titular do direito real à aquisição reclamaria a escritura pública constitutiva do direito à transmissão do domínio, apenas para confirmar-se senhorio da coisa adquirida, formalizando a sua titularidade.

          É imperativo que se assinale que a moderna doutrina do direito civil refere a substantividade da promessa, além da própria evidência da satisfatividade coletada no direito material, que confirmam não apenas a autonomia mas, até mesmo, a própria definitividade da promessa.

          Frederico de Castro (16), concebe que a promessa, desde que não se exija o cumprimento do contrato definitivo, ou a relação jurídica não seja afetada por motivo que determine a sua extinção, "é vinculação jurídica que vive com plena substantividade".

          O projeto do Código Civil (17), expressa, no artigo 457 a 459 (18), em seção dedicada à disciplina do contrato preliminar, que o contrato preliminar que contenha todos os requisitos essenciais ao contrato a ser celebrado, uma vez concluído e dele consiste cláusula de irretratabilidade, a pedido do interessado o juiz poderá suprir a vontade do inadimplente, conferindo caráter definitivo ao contrato preliminar.

          Salvo mais oportuno e valioso juízo, infere-se que o legislador entendeu ociosa a execução compulsória voltada para a reprodução do contrato, tão somente para consagrar uma formalidade, fixando-se em decreto declaratório, constitutivo do direito à propriedade, concedendo ao contrato preliminar a eficácia do ajuste definitivo.

          À luz do atual diploma civil, não se poderia concluir, evidentemente, pela ociosidade da escritura pública de compra e venda e subsequente ato registral, porque o artigo 530, I (19), do Código Civil, reclama o registro do titulo de transferência  (do domínio), como modo de aquisição da propriedade pertinente à espécie. Tratamos, obviamente, da equivalência dos títulos – ambos levados a registro no ofício competente – quanto à produção de efeitos no que respeita ao exercício dos direitos à própria coisa e à sua defensabilidade contra terceiros, como já foi constatado.

          Trata-se, na efetivação da escritura pública de compra e venda, indubitavelmente, de veraz constituição do direito à propriedade. Entretanto, pode-se conceber que o suprimento dominial ofertado pelo contrato definitivo, em oposição à preexistente promessa de transferência essencializada no contrato informal, afigura-se como espécie de ato declaratório, já que os poderes decorrentes da transmissão do domínio, assim constituído pelo contrato definitivo, estão presentes no contrato de promessa, desde que atendida à formalização indispensável à constituição do jus in re.

          Dispensando-se os atos de fruição e de disposição, que também são pertinentes a outros tipos contratuais que constituem o juz in re aliena – v.g. o usufruto e a enfiteuse – o contrato de promessa atribui o direito à reivindicação que é meio de defesa da coisa própria, visto que o registro confere o direito de oponibilidade erga omnes, podendo voltar-se o promissário comprador contra quem quer injustamente detenha a coisa.

          Não fosse tão clara essa possibilidade jurídico-processual, a partir da invocação da defensabilidade erga omnes, constatar-se-ia que essa faculdade decorreria da própria aptidão para o exercício do direito à adjudicação. Se o titular do direito à aquisição pode voltar-se contra o titular da propriedade, poderá fazê-lo contra terceiros, desde que superada a relatividade dos efeitos da convenção privada, com a constituição do direito real oponível a terceiros, exsurgente do registro do titulo constitutivo.

          O direito a adjudicação emerge do caráter irretratável da obrigação de fazer dirigida à transmissão do domínio, objeto de execução compulsória de que constitui titulo hábil a sentença judicial. O facere a que se obrigou o alienante, é prestação típica que não pode ser adimplida de outro modo senao pela outorga da escritura pública. Até mesmo porque, não o fazendo, a sentença judicial supre a manifestação volitiva do promitente, sem que o juiz, entretanto, substitua o contraente faltoso, ou então o decreto seria desnaturado. Na verdade, o juízo determina a execução específica do pré-contrato visto que o promitente, não obstante a natureza irretratável do próprio gênero negocial  (pacta sunt servanda), reproduz especificamente a sua subordinação ao caráter irrevogável e irretratável da obrigação especifica, renunciando ao arrependimento – vale dizer, constituindo um vínculo definitivo à promessa singularmente exigível, de tal sorte que só será satisfeito o facere, afastando-se até mesmo a satisfação da prestação com a alternativa obrigação de indenizar. Com a renúncia especifica, como que derroga-se o principio nemo precise cogi potest ad factum, eis que a cominação não se configura constrangimento físico ou privação da liberdade. Por isso mesmo, torna-se dispensável a prestação pessoal, não havendo como se justificar a titularidade do direito à aquisição, do ato valido à constituição do domínio, senão em virtude da obligatio faciendi especializada, posto que a formalidade suplementar requerida para perfeição do ajuste, cinge-se à obtenção do direito à oposição contra todos.

          Por todos os argumentos expendidos, à luz do ordenamento positivo e dos julgados das cortes de justiça, consagra-se a satisfatividade do titulo da promessa de compra e venda, desde que não contenha ressalva expressa do direito ao arrependimento, e seja reduzida a termo escrito, devidamente registrada no cartório de registro imobiliário competente, tenha resgatado o promissário comprados as suas obrigações convencionais, especialmente as de pagamento do preço avençado.

          Finalmente, não é excessivo aditar ao tema especifico, a recomendação do ilustre e douto Miguel Reale, das mais autorizadas expressões da doutrina do direito brasileiro, segundo a qual "...o Código Civil é a constituição da sociedade civil, ...a constituição do homem comum." (20), e que, por isso mesmo atende à demanda da sociedade. Ei porque o novo texto, segundo a opinião do citado jurisconsulto, Supervisor da Comissão Elaboradora e Revisora do Código Civil, tendencia-se mais para o operacional que o conceptual, para o realismo que para o abstrato.

          O próximo milênio marcará a definitiva superação do individualismo e do formalismo, pela socialidade e pela operacionalidade. Não se abandonará, com certeza, a forma, desde que necessária à substância do negócio ou à cautela dos direitos que reclamam maior proteção da lei, mormente quando se trate de preceitos de ordem pública. Mas a formalidade, sobretudo nos negócios jurídicos, tende a minimização, na justa medida em que a norma jurídica voltar-se-á, necessariamente, na busca de instrumentos de garantia do adimplemento contratual.


NOTAS

          1. "Las Transformaciones Generales del Derecho". Editorial Heliasta. 1ª. Edição, Págs. 171.

          2. "Art. 1.088 – Quando o instrumento público for exigido como prova do contrato, qualquer das partes pode arrepender-se, antes de o assinar, ressarcindo à outra as perdas e danos resultantes do arrependimento, sem prejuízo do estatuído nos arts. 1.095 a 1.097"

          3. É pitoresco e valioso constatar que a fórmula da estipulação romana consagra duas expressões que vinculavam as obrigações das partes co-respectivamente: - Spondesne? – Spondeo! (Prometes? Prometo!) apud Léon Duguit "Las transformaciones generales del derecho"- Editorial Heliasta/Argentina – sem registro de data ou edição, págs. 223

          4. Art. 131 – As declarações constantes de documentos assinados presumem-se verdadeiras em relação aos signatários.

          5. Art. 135 – O instrumento particular, feito e assinado, ou somente assinado por quem esteja na disposição e administração livre de seus bens, sendo subscrito por duas testemunhas, provas as obrigações convencionais de qualquer valor. Mas os seus efeitos, bem como os da cessão, não se operam, a respeito de terceiros  (Art. 1.067), antes de transcrita no registro público.

          6. "Art. 1.126 – A compra venda, quando pura, considerar-se-á obrigatória e perfeita, desde que as partes acordarem no objeto e no preço"

          7. Para o direito francês, "...promesse de vente vaut ventre" segundo magistério de Planiol, Ripert e Boulanger "Traité élementaire de droit civil" vol. 2.

          8. Art. 134 – É outrossim da substância do ato a escritura pública

          I –

          II – Nos contratos constitutivos ou translativo de direitos reais sobre imóveis de valor superior a Cr$ 50.000,00  (cinqüenta mil cruzeiros), excetuando o penhor agrícola.

          9. Contratos, Ed. Forense, 1997. Pág. 139.

          10. Apud PEREIRA, Caio Mário S., Inst, Dir. Civil, Forense, 1984. Pág. 59.

          11. "O registro do compromisso de compra e venda no Registro Imobiliário gera direito real oponível a terceiros. Ser oponível a terceiros significa que, uma vez registrado o compromisso, perde o proprietário o poder de disposição da coisa prometida" RT, 490:187 – apud DINIZ, Maria Helena "Tratado Teórico e Prático dos Contratos", vol. 1, págs. 295 (As expressões "registro" e "registrado", realçados pelo autor, servem à disciplina da Lei 6.015/73 e não constam do original, que se refere a "inscrição" e "inscrito").

          12. "O compromisso de compra e venda irrevogável e irretratável cujo preço está totalmente pago e que se encontra devidamente registrado confere a seu titular direito real oponível erga omnes e, portanto, o poder de reivindicar o imóvel" RT, 593:74 – apud DINIZ, Maria Helena "Tratado Teórico e Prático dos Contratos", vol. 1, págs. 294.

          13. "Ação Reinvidicatória – Promissário Comprador – Equiparação do dominus. Se ao ajuizar uma ação reivindicatória seus autores são titulares de compromisso de compra e venda irretratável e inscrito, gerador de direito real, este compromisso equipara-os ao dominus, inclusive para efeito de reivindicar" TJSP, ac. Un. Da 2a CCv, in ADCOAS 1981.

          14. "Considerando o crescente desenvolvimento da loteação de terrenos para venda mediante o pagamento do preço em prestações; Considerando que as transações assim realizadas não transferem o domínio ao comprador, uma vez que o art. 1.088 do Código Civil permite a qualquer das partes arrepender-se, antes de assinada a escritura de compra e venda; Considerando que esse dispositivo deixa praticamente sem amparo numerosos compradores de lotes, que têm assim por exclusiva garantia a seriedade, a boa-fé e a solvabilidade das empresas vendedoras; Considerando que para segurança das transações realizadas mediante compromisso de compra e venda de lotes, cumpre acautelar o compromissário contra futuras alienações ou onerações dos lotes comprometidos:..."

           (O realce não consta do original)

          15. Preferimos a denominação "promessa", para extremá-la do "compromisso" a que se refere a seção I, Capítulo XIV do Livro III do Código de Processo Civil, expresso conceitualmente no art. 1.072 e seguintes do mesmo diploma legal.

          16. "La Promessa de Contrato". Apud GOMES, Orlando. Op. Cit. Pág. 139

          17. "Anteprojeto de Código Civil", Saraiva, 1972

          18. "Art. 457 – O contrato preliminar, exceto quanto à forma, deve conter todos os requisitos essenciais ao contrato a ser celebrado"

          "Art. 458 – Concluído o contrato preliminar, com observância do disposto no artigo anterior, e desde que do mesmo conste cláusula de irretratabilidade, qualquer das partes terá o direito de exigir a celebração do definitivo, assinando prazo à outra parte que o efetive."

          "Art. 459 – Esgotado esse prazo, poderá o juiz, a pedido do interessado, suprir a vontade da parte inadimplente, conferindo caráter definitivo ao contrato preliminar, salvo se a isto não se opuser a natureza da obrigação"  (o realce não consta do original.)

          19. "Art. 530 – Adquire-se a propriedade imóvel:

          I – Pela transcrição do título de transferência no registro de imóvel."

          20. "Visão geral do Projeto do Código Civil", in Revista Literária do Direito., Maio/Junho de 1998, págs. 10. 

 

Sobre o autor
Pedro Simões Neto também publicou, dentre outras obras, dois manuais: de Direito das Coisas e de Direito dos Contratos.
 
E-mail: psimoes@digi.com.br

Sobre o texto:
Texto inserido no Jus Navigandi nº 35

Informações bibliográficas:
Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
SIMÕES NETO, Pedro. Eficácia, satisfatividade e direito à adjudicação nos contratos de promessa de compra e venda com estipulação de irretratabilidade . Jus Navigandi, Teresina, a. 3, n. 35, out. 1999. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=565>.