A nova teoria do direito contratual no Brasil

 

Jones Figueiredo Alves*

 

Para que melhor se compreendam os contratos em espécie, regulados no novo Código Civil, como relações jurídicas obrigacionais, impende considerar, de imediato, acerca das cláusulas gerais dos contratos, acertadas pelos arts. 421 e 422, com emprego pertinente a todos eles. Tais disposições introdutórias articulam um direito contratual reestruturado ou reconstruído, pronto a servir ao princípio de socialidade, um dos pilares básicos do direito moderno.

Esse princípio celebra a primazia ou preponderância dos chamados valores plurais ou coletivos em face dos equivalentes axiológicos do plano individual, em prestígio e tutela do bem estar coletivo. Encontra-se ele na função social do contrato (art. 421), na proteção ao hipossuficiente da relação contratual (art. 423), na natureza social da posse, a ditar reduções de prazo para a usucapião (arts. 1.238 parágrafo único, 1.239, 1.240, 1.242 e 1.242 parágrafo único) ou a permitir a expropriação judicial (art. 1.228 parágrafo 4º), como em outras disposições.

Não é demais lembrar que essas regras vestibulares, pela aplicabilidade genérica de estipulação, empreendem e plasmam uma Nova Teoria Geral dos Contratos, suficientes a informar a relevância do trespasse do modelo clássico contratual, individualista e patrimonializante, para um modelo moderno de produção coletiva dos interesses contratados, a humanizar o direito contratual como fonte primária de interesse social.

Bem a propósito, a conciliar os valores individuais e coletivos do contrato, no implexo de uma correlação inarredável, situa Miguel Reale ser o contrato "um elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo como aquele que o cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como o lugar onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e medida" ( in "O Projeto do Código Civil", Ed. Saraiva, São Paulo, 1986, p. 10 ).

Por tal razão, prepondera o direito como função, segundo a análise funcional defendida por Norberto Bobbio. Impregnado, hodiernamente, pelos influxos axiológicos e sociológicos, e nutrido, ainda, pelas repercussões indeclináveis do econômico e do político, serve a sua funcionalidade a ditar uma moderna concepção para a valorização do contrato, enquanto "fenômeno de relação de condutas de intersubjetividade" e destinado como exemplo de concretitude do próprio direito.

O contrato não é apenas um instrumento jurídico, de interesses puramente interpessoais ou de operação de proveitos. O seu conteúdo deve importar nos fins de justiça e de utilidade, em superação do egocentrismo individual onde permeiam a fragilização do débil e a dominação do mais forte.

Forte em tais lineamentos, o novel Código Civil - Lei nº 10.406, de 10.01.2002 - ao construir o negócio jurídico como categoria geral, gênero do qual o contrato é espécie, fornece uma série de normas próprias aos contratos, sob inspiração orientadora dos princípios de eticidade, socialidade e operabilidade, que o determinaram preciso e contemporâneo, de forma a estabelecer um modelo social do contrato, assentado no primado da integração das relações jurídicas com uma sociedade livre, justa e solidária, segundo o ditame do art. 3º, I, da Constituição Federal.

Nessa diretriz, expressivas inovações apresentadas são paradigmas de uma teoria contratual concentrada na finalidade social atenta ao perfazimento de noções programáticas de justiça e de utilidade, com efetividade no adequado e correto equilíbrio das relações contratuais, em perspectiva da equivalência das prestações, da razoabilidade indiscutível e, sobremodo, da estabilidade obrigacional no plano fático da realidade.

Os princípios gerais do contrato ganham dimensão axiológica mais dinâmica, em denso atendimento aos valores da solidariedade e da cooperação, a observar que o contrato destina-se a atender interesses sociais relevantes numa sociedade de consumo e de produção, massificada por interesses multifacetados e até antagônicos. O contrato deixa de ser apenas uma operação jurídica, com fins econômicos, nele obtendo profundidade a responsabilidade social dos contratantes, atuando com probidade, boa fé e em recepção de preceitos de ordem pública.

A prevalência volitiva, determinada pelo liberalismo econômico, como princípio da autonomia da vontade, é atenuada por tais diretrizes, porquanto passa-se a exigir que a liberdade de contratar seja exercida com paridade entre as partes no tocante ao próprio conteúdo do contrato, igualdade que se reclama substancial, em favor da correção do negócio.

A irrevogabilidade ou imutabilidade do "pacta sunt servanda", cujo axioma configura o princípio da obrigatoriedade dos contratos, em observância de os pactos deverem ser cumpridos ( art. 427 ), com risco de perdas e danos pelo inadimplemento ( art. 389 ), cede lugar a uma relatividade dogmática, a reprimir a falta de idêntica liberdade entre as partes contratantes, o proveito injustificado, a onerosidade excessiva, admitindo a correção dos rigores contratuais ante o desequilíbrio contratual.

O reconhecimento do valor social do contrato surge como dirigismo contratual, a introduzir no novo Código Civil institutos como o do estado de perigo ( art. 156 ) da lesão ( art. 157 ), e da cláusula "rebus sic stantibus", segundo a teoria da imprevisão ( arts. 478-480 ) representativos do Estado Providência, em protecionismo social ao economicamente mais fraco nas relações contratuais.

A principal novidade é a oferecida pelo art. 421 do Código, acentuando a diretriz da sociabilidade do direito, ao dispor que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

A moldura limitante do contrato tem o escopo de acautelar as desigualdades substanciais entre os contraentes, segundo a advertência de José Lourenço, valendo como exemplo os contratos de adesão. O reflexo social da norma serve de escopo de garantia ao íntegro equilíbrio entre os interesses dos contratantes e os da comunidade, superando a dicotomia entre os interesses privados e coletivos.

Por seu turno, o art. 422 tutela a probidade e a boa fé objetiva, a primeira como o conjunto de deveres éticos, exigidos nas relações jurídicas, em especial os de veracidade, integridade, honradez e lealdade, e a segunda, como corolário daquele, implicando essa cláusula geral de boa fé, função integradora e de controle do contrato, regra de conduta segundo os padrões exigíveis de crença objetiva de comportamentos idealizados.

Os arts. 423 e 424, atinentes aos contratos por adesão, dispondo sobre a interpretação mais favorável ao aderente, em garantia de igualdade substancial, em casos de cláusulas ambíguas ou contraditórias e vedando cláusulas estipuladoras de renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio, representam a proteção jurídica necessária à parte economicamente mais fraca na contratação de massa. Vale lembrar que a tutela protetiva do Código de Defesa do Consumidor disciplinou o contrato de adesão tendo em vista as relações de consumo. O novo Código Civil, tratando, também, a respeito dos contratos de adesão, faz alcançar a proteção ao aderente não consumidor, o que implica, na prática, garantir os negócios jurídicos em face dos contratantes insumidores.

A onerosidade excessiva superveniente como causa resolutória do contrato, pelo qualificativo do gravame desmedido, durante a sua execução, é prevista pelo art. 478, nos casos de contratos não instantâneos, aqueles de execução continuada ou diferida, diante das modificações exteriores que lhes venham causar significativo desequilíbrio econômico. O novo Código introduz a teoria da imprevisão, a permitir, destarte, a revisão contratual mediante fundadas alterações eqüitativas para o necessário reequilíbrio em conservação do contrato com atenção ao benefício de sua utilidade.

Estas normas, por sua teleologia, manifestam uma revisão principiológica do novo direito contratual. Segundo seus postulados, edifica-se uma teoria aplicada no objetivo do interesse coletivo, a permitir o imperativo da lei como intervenção suficientemente capaz de enobrecer o contrato em sua função social.

O Novo Código desenvolve e operacionaliza uma exigência impostergável, a de o contrato ajustar-se, com maior proximidade de perfeição, à relevância dos valores de uma sociedade mais harmônica e justa, permitindo, afinal, pela compreensão do caso concreto, maior atuação e permanente atualidade de suas diretrizes.

É certo. Uma nova exegese, superativa do conceito tradicional de contrato, limitativa do dogma da autonomia da vontade, instituída pela necessidade de análise dos resultados sociais do pacto apresenta-se, agora, cogente.

A esse propósito, proclama-se um tempo novo de dicção do direito na experiência judiciária em cotejo do Código Civil modernizado, efetivando a novel teoria contratual por ele consagrada.

 


Jones Figueiredo Alves é desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco e co-autor da primeira obra doutrinária sobre o novo Código Civil.