O NOVO CÓDIGO CIVIL E OS CONTRATOS CELEBRADOS ANTES DA SUA VIGÊNCIA
Pablo Stolze Gagliano
juiz de Direito, professor de Direito
Civil da Faculdade de Direito da UFBA, professor de Direito Civil Convidado da
EMAB, ESMIP e do Curso JusPodivm
e-mail: pablostolze@aol.com
Com
a entrada em vigor do novo Código Civil, importantes problemas referentes ao
Direito Intertemporal poderão ser suscitados, exigindo do magistrado redobrada
cautela. Um desses problemas diz respeito à possibilidade de incidência da lei
nova em contratos celebrados antes de 11 de janeiro de 2003.
Tentando
dirimir eventual conflito de normas, o Código Civil, em seu art. 2035, dispõe
que:
"A validade dos
negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste
Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas
os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se
subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de
execução.
Parágrafo único. Nenhuma
convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os
estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e
dos contratos".
Segundo
esta regra, os negócios jurídicos celebrados antes da entrada em vigor do novo
Código continuarão regidos pelas leis anteriores (Código Civil de 1916, Código
Comercial), no que tange aos seus pressupostos de validade (nulidade e
anulabilidade).
Destarte,
tomando como exemplo um contrato de mútuo (empréstimo de coisa não fungível)
celebrado em 2000, não poderá o intérprete invocar os pressupostos de validade
do art. 104 do CC-02, eis que continuará a ser aplicada a regra anterior do
código revogado (art. 82 – agente capaz, objeto lícito, forma prescrita ou não
defesa em lei).
Da
mesma forma, não se deve pretender aplicar as regras da lesão e do estado de
perigo (defeitos do negócio jurídico), inauguradas pelo Código de 2002 (art.
156 e 157), restando ao hermeneuta recorrer a outros meios de colmatação,
eventualmente aplicáveis, e à luz da disciplina normativa anterior.
Por
tais razões, um contrato celebrado por um menor de 18 anos, antes de 11 de
janeiro (data da entrada em vigor do novo Código), continua sendo anulável
(art. 147, I, CC-16), a despeito da redução da maioridade civil (18 anos), eis
que, à época da celebração do negócio, segundo a lei então vigente, o ato seria
considerado inválido.
Aliás,
esta impossibilidade de retroação dos efeitos da lei nova para atingir a
validez dos negócios já celebrados apenas consubstancia a observância da regra
constitucional que impõe o respeito ao ato jurídico perfeito (art. 5°, XXXVI,
CF).
No
entanto, se, por um lado, não pode a lei nova atingir a validade dos negócios
jurídicos já constituídos, por outro, se os efeitos do ato penetrarem o âmbito
de vigência do novo Código, deverão se subordinar aos seus preceitos, salvo se
houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.
Esta
parte final do caput deverá causar polêmica, e abrir margem à
insegurança jurídica. Para melhor entendê-lo, cumpre-nos marcar, neste ponto,
um divisor de águas: quanto ao aspecto de sua validade, não poderá o Código de
2002 atingir negócios celebrados antes da sua vigência; no entanto, quanto ao
seu aspecto eficacial, ou seja, de executoriedade ou produção de seus efeitos,
caso estes invadam o âmbito temporal de vigência da nova lei, estarão a esta
subordinados.
Um
exemplo.
Imaginemos
um contrato de financiamento celebrado em 1999, de execução repetida no tempo
(trato sucessivo), em que o financiado se obrigou a pagar, mensalmente,
prestações pecuniárias à instituição financeira pelo prazo de 5 anos. Pois bem.
Entra em vigor o novo Código Civil. Este, por expressa dicção legal, não poderá
interferir na validade do negócio celebrado, embora os efeitos do contrato – de
execução protraída no tempo – se sujeitem às suas normas (art. 2035).
Com
isso, regras como as relativas à "resolução por onerosidade
excessiva"(1) (arts. 478 a 480), à "correção econômica das prestações
pactuadas" (art. 317), ao "aumento progressivo de prestações
sucessivas" (art. 316), ou às "perdas e danos" (arts. 402 a
405), para citar apenas alguns exemplos, poderão ser imediatamente aplicadas
aos negócios jurídicos já constituídos, por interferirem, apenas, em seu campo
eficacial ou de executoriedade.
Entretanto,
nos termos da parte final do art. 2035, se as partes houverem previsto outra
forma de execução, a exemplo da execução instantânea (que se consuma
imediatamente, em um só ato), ou se afastaram a incidência de determinadas
regras consagradas na lei nova – que não tenham substrato de ordem pública – a
exemplo do aumento progressivo das prestações sucessivas, poderá ser evitada a
incidência da nova lei.
Mas
observe: determinadas normas, como a que prevê a resolução por onerosidade
excessiva ou a correção econômica das prestações pactuadas, em nosso
pensamento, por seu indiscutível caráter publicístico e social, não podem, aprioristicamente,
ser afastadas pela vontade das partes.
Finalmente,
o parágrafo único do artigo sob comento, utilizando linguagem contundente,
determina que "nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de
ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a
função social dos contratos e da propriedade".
Utilizando
a expressão "nenhuma convenção", o legislador impõe a todos os
negócios jurídicos, não importando se celebrados antes ou após a entrada em
vigor do novo Código, a fiel observância dos seus preceitos de ordem pública,
especialmente a função social da propriedade e dos contratos.
Assim,
contratos que violem regras ambientais ou a utilização econômica racional do
solo, assim como as convenções que infrinjam deveres anexos decorrentes da
cláusula de boa fé objetiva (lealdade, respeito, assistência, confidencialidade,
informação), expressamente prevista no art. 422 do novo Código, não poderão
prevalecer, ante a nova ordem civil.
NOTA
(1)
Trata-se da construção legal desenvolvida a partir da teoria da imprevisão.